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Jamil Chade relata desumanização de imigrantes sob Trump em ‘distopia’


O jornalistas Jamil Chade relata, em livro recém-lançado, a desumanização do imigrante nos Estados Unidos (EUA) de Donald Trump em um cenário ‘distópico’ de uma sociedade em crise e empobrecida.

Em entrevista exclusiva à Agência Brasil, Jamil fala do seu livro Tomara que você seja deportado: uma viagem pela distopia americana, da editora Nós, destacando a decadência da democracia hackeada dos EUA e o papel da desinformação no projeto de poder da extrema-direita.

O jornalista percorreu, entre 2024 e 2025, milhares de quilômetros em mais de uma dezena de estados e visitou os dois lados do muro que separa os EUA do México.  

Sobre a América Latina, Jamil analisa que os EUA buscam enquadrar o continente “no seu quintal” em meio à disputa com a China e que o Brasil “é a joia da coroa” das ambições de Washington para a região.  

Trabalhando em Genebra, na Suíça, há 25 anos como correspondente internacional, o experiente jornalista já visitou 70 países e passou por diversos meios de comunicação.

O título Tomara que você seja deportado é uma referência à frase dita ao filho de Jamil, uma criança, na escola em que frequentava, em Nova York.

“A garota que usou esse instrumento é tão vítima quanto meu filho. Vítima de uma liderança que decidiu transformar o outro em inimigo”, escreveu Jamil.  

Já o termo distopia é usado, geralmente na literatura ou no cinema, para descrever uma realidade imaginativa aterrorizante em que se vive em extrema opressão. É a oposição da utopia.
 


Estados Unidos, 05/09/2025 - Foto de Jamil Chade nos Estados Unidos. Jamil Chade/Divulgação

Jamil Chade percorreu milhares de quilômetros nos EUA e visitou os dois lados do muro que separa os EUA do México – Jamil Chade/Divulgação

Confira a íntegra da entrevista:

Agência Brasil: Em seu livro, você aborda a distopia da sociedade estadunidense. O que é essa distopia? O que está acontecendo com os EUA?
Jamil Chade: O fenômeno Trump, no fundo, é o resultado de uma crise existencial da sociedade americana. Ele não é a causa. O que eu vi nesse ano viajando por lá foi uma sociedade que vive o fim dos mitos do “sonho americano” e do “destino manifesto” [que atribui uma missão divina civilizatória aos EUA] que eram as bases daquela sociedade.
Nesse contexto, o governo Trump tenta recuperar o que acredito que é irrecuperável: essa ideia de que não haveria nada que poderia deter aquele país. É uma tentativa, quase desesperada, de retomar uma hegemonia que já não existe mais. Só que as consequências disso tudo são muito dramáticas.

Agência Brasil: É aí que entra a distopia?
Jamil Chade: Exatamente. Essa distopia é esse momento em que esses mitos se desfazem. É a contradição de um sistema capitalista muito agressivo que deixa pessoas em um limbo, na pobreza, que acaba gerando um cenário distópico.
O distópico não é só uma figura de linguagem. Cidades que eu visitei, por exemplo, no Arkansas, pareciam estar em um filme fantasmagórico. A cidade abandonada e empobrecida. Periferias de grandes cidades abandonadas com pessoas vivendo em uma situação econômica equivalente à de Bangladesh. Isso dentro dos EUA. Essa é a distopia que eu falo.
 


Estados Unidos, 05/09/2025 - Foto de Jamil Chade nos Estados Unidos. Jamil Chade/Divulgação

Imagens de Jamil Chade para seu livro Tomara que você seja deportado: uma viagem pela distopia americana – Jamil Chade/Divulgação

Agência Brasil: Você descreve o pânico e o medo dos imigrantes e cita a desumanização dessas pessoas. Qual a situação dos imigrantes nos EUA e qual o papel dessa desumanização no projeto político de Trump?
Jamil Chade: A palavra central é desumanização, porque quando você desumaniza o outro você tira justamente as obrigações que aquele Estado tem de prestar serviços e de garantir os direitos básicos. Afinal, ele já não é tão mais humano quanto os demais.
A desumanização nos EUA dos imigrantes não é um ato involuntário, é deliberadamente construído justamente para tirar direitos. Desumanizar é uma estratégia política para justificar deportação, xenofobia e racismo.
Sempre digo que um genocídio não começa com o primeiro disparo, ele começa na desumanização. Você autoriza o ódio. E, no caso americano, é exatamente essa a situação.

Agência Brasil: Nos EUA, teorias da conspiração prosperam com facilidade, entre elas, destaca-se a negação da crise climática. Qual o papel da desinformação na ascensão de Trump?
Jamil Chade: As grandes empresas digitais têm o poder, basicamente, de criar realidades. Milhões de pessoas se baseiam não nos jornais, mas nas redes sociais para formar suas opiniões e depois votar. É como se a democracia tivesse sido hackeada.
A desinformação não é um erro de apuração do repórter, não é um viés de um jornal. Desinformação é uma estratégia de poder, é uma estratégia de desmontar a realidade para levar o eleitor a chancelar outra realidade fabricada. É algo muito grave.
Nos Estados Unidos, essa desinformação foi amplamente instrumentalizada para a vitória de Trump. O caso americano mostra que não há outra alternativa senão a regulamentação das redes sociais.

Agência Brasil: Por que a mídia empresarial não é capaz de barrar essa desinformação? A mídia pró Trump – como a Fox News – participa dessa desinformação?
Jamil Chade: Eu digo que na eleição de 2024 a desinformação venceu. Venceu apesar de toda a operação da mídia tradicional em rebater, em fazer jornalismo, mas não foi suficiente porque a onda de desinformação aconteceu, em primeiro lugar, pelas plataformas digitais.
Essa desinformação depois é chancelada pela imprensa tradicional pró-Trump, que dá um verniz de notícia. Toda aquela teoria conspiratória que faz aquele caminho tradicional da desinformação, dias depois, passa a ser notícia e ganha um status quase de verdade. Esse é o papel da Fox News e de outras mídias pró-Trump.


Brasília (DF), 04/09/2025 - O jornalista Jamil Chade durante entrevista para a Agência Brasil. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Jornalista Jamil Chade durante entrevista para a Agência Brasil – Marcelo Camargo/Agência Brasil

Agência Brasil: Trump usou a Guarda Nacional para intervir em estados e cidades controlados pelos democratas. Qual o objetivo dele com essas intervenções?
Jamil Chade: O primeiro objetivo é sinalizar que o governo federal pode intervir em cidades, em estados, dependendo do interesse do governo federal. Isso é muito grave.
Outro objetivo é o da intimidação. Você coloca a Guarda Nacional nas ruas, que são militares, para intimidar todo mundo – o governador de oposição, a sociedade, os imigrantes. Todo mundo passa a estar ameaçado.
O terceiro aspecto é, eventualmente, preparar para algum tipo de estado de sítio. Esses soldados estão ali conhecendo como funciona aquela cidade para, se for necessário, usar em um estado de sítio.

Agência Brasil: A pedido de Trump, o Texas alterou o desenho dos distritos eleitorais. Democratas dizem que a mudança beneficia os republicanos nas eleições legislativas de 2026 ao incluir, em distritos de maioria negra e hispânica, regiões de maioria branca. Isso não distorce a vontade popular?
Jamil Chade: Claro. O grande medo de Donald Trump, que está em jogo na eleição de 2026, é perder o Legislativo e o seu próprio projeto pode ficar ameaçado. Ele então já prepara uma alternativa que é mudar as regras do jogo.
Esse é o grande temor hoje da democracia americana. A democracia vai ser um jogo com plataforma sólida de regras, ou elas vão mudar dependendo do interesse daquela pessoa no poder?
O problema não é o Texas, é o que isso sinaliza. Isso sinaliza que, se eu achar que vou perder, eu vou mudar as regras para continuar no poder. Isso, nem de perto, é democracia.

Agência Brasil: Como está a democracia dos EUA após esses oito meses de governo Trump?
Jamil Chade: Os instrumentos da democracia, entre eles a eleição, estão sendo usados para manter um grupo no poder. Ela não atende mais ao objetivo da democracia, que é dar o poder à população.
Os instrumentos da democracia foram manipulados para que Trump chegasse ao poder. Uma vez no poder, eles transformam as leis, fazem um embate com o Judiciário, desmontam a liberdade de expressão de fato, porque eles não têm nenhum compromisso com a liberdade de expressão, muito pelo contrário.
Essa é talvez a novidade da nossa geração. É o uso da democracia por movimentos autoritários. A democracia vai sobreviver a isso? Ainda não temos resposta.

Agência Brasil: No livro, você destaca que Trump tenta desmontar a ordem mundial erguida após a 2ª Guerra Mundial. Por outro lado, a cúpula da Organização pela Cooperação de Xangai colocou Índia, China e Rússia juntos. Esse movimento do eixo euroasiático ameaça a ordem mundial que Trump pretende criar?
Jamil Chade: Trump vê a ordem internacional criada após a 2ª Guerra não como obsoleta, mas como uma ameaça aos seus interesses. Ele quer desmontar essa ordem porque ela representa limites para o seu próprio poder. Essa velha ordem já morreu, sem dúvida nenhuma, o que nós estamos é na disputa da nova ordem.
Agora, a iniciativa chinesa apresenta os seus princípios de ordem internacional, com base na soberania, não hegemonia, multilateralismo. Isso é uma resposta ao Trump.
Essa sinalização de uma aliança com Índia e Rússia mostra que um dos efeitos de Donald Trump é reorganizar o mundo. É obrigar o mundo a se reorganizar para enfrentar essa situação.
 


Estados Unidos, 05/09/2025 - Foto de Jamil Chade nos Estados Unidos. Jamil Chade/Divulgação

Estados Unidos – Campanha eleitoral de Donald Trump em 2024 – Jamil Chade/Divulgação

Agência Brasil: Na América Latina, tem o aumento do cerco à Cuba, a ameaça de invasão da Venezuela, e o uso do suposto combate às drogas para interferir nos países da região, além da tentativa de interferir no julgamento da trama golpista no STF. Como você avalia a posição da América Latina nesse contexto?

Jamil Chade: A América Latina está em uma encruzilhada muito profunda. A pressão americana é muito grande e vai ser cada vez maior. Eles fazem um cálculo muito claro de que nessa disputa por hegemonia com a China, a América Latina é deles. É o quintal deles que precisa ser recuperado.
Eles também têm uma consciência muito grande de que não existe a recuperação da América Latina sem passar pelo Brasil. O Brasil é a joia da coroa. Não adianta ter influência no Paraguai, no Peru, no Equador, mas não ter influência no Brasil.
Então, 2026 vai ser um momento chave, não só, eu diria, para a democracia brasileira, ela é chave para a América do Sul. Dependendo de onde o Brasil vai com a eleição em 2026, vai determinar de que forma esse jogo geopolítico vai ser jogado.
Já estariam na zona de influência deles a Argentina, Paraguai, Peru, Equador e Guiana. A Bolívia, agora com a eleição, já caiu. O Chile no final do ano, com a eleição, é altamente provável que a extrema-direita ou direita governe o país.  
E daí, para 2026, ficam faltando só dois países, a Colômbia e o Brasil. Se eles completarem isso, os EUA têm uma América do Sul inteirinha sob sua influência.



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